quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Serra do Gerês - Volta da Geira Romana

Decidimos ir ao Gerês, à semelhança de Gredos, esta estava também adiada há muito e estava na altura de um ponto de fuga ciclistico.
O Parque Nacional da Peneda-Gerês foi criado em 1971, tem cerca de 72000 hectares de incríveis construções da natureza integrado no Maciço Hespérico, considerado pela UNESCO como Reserva Mundial da Biosfera.
O alojamento foi no Parque de Campismo da Cerdeira, um pouco acima do centro da aldeia Campo do Gerês a chegar à Barragem de Vilarinho das Furnas, indiscutivelmente aconselhado, não só pelo espaço envolvente como pela bela esplanada e apetitoso restaurante.
No parque, bicicletas preparadas e GPS para estrear, estávamos prontos para mais um dia do pedal. Começámos a descer até ao Campo do Gerês, o dia prometia, céu bem azul e o sol a aquecer-nos com os seus primeiros raios. No Campo do Gerês, e para não fugir à regra, ainda mal tínhamos começado e já andávamos aos papéis... voltas e voltinhas que nos levavam sempre ao mesmo sítio... não tínhamos nem 3 quilómetros e eu já me tinha espalhado e embrulhado nas silvas... O percurso inicial cruza-se com o percurso final, o guia estava a adaptar-se ao novo GPS e aqui não podia recorrer ao GPSmassacinzenta pois esta fuga é nova para os dois. Saímos da vila, pedalamos em alcatrão e parece que encontramos o sentido correcto do track, agora é que é...
Chegámos a Covide, uma pequena aldeia bem ao estilo serrano, casas de pedra e cheiro característico, cruzámo-nos com dois caminhantes que pelas caras estavam também extasiados com o misticismo da pequena aldeia.



Continuamos pela Nacional 304, absorvidos pela descida a embalar-nos nas curvas quando demos conta que... “Uuuuppss!!!! Já passámos o desvio....” Voltamos a subir e, escondido atrás de uma casa como que um caminho de serventia privada, lá estava o trilho que iria tirar-nos do asfalto... a subir claro...
Passada a sensação de estar a pedalar nos quintais dos vizinhos naquela minúscula terriola perdida na encosta que desce para Rio Caldo, estávamos agora por nossa conta, dali para cima só mesmo por aquele estradão de terra. A visão da encosta era de tal forma enrugada que não dava para ter a percepção do quanto íamos subir...
Começámos a subir... subir... subir... o calor aperta, a cabeça quase rebenta de quente, precisamos de água... continuamos a subir, o vale vai ficando cada vez mais fundo e a melodia de imensidão vai contagiando os nossos olhos, queremos ver tudo, fotografar tudo, o tudo é nada... estar no meio do nada... para nós é tudo!!!


Já moídos da inclinação e contentes por parecer pouco faltar, com o sol do meio-dia a fritar a noz cerebral, a motivação para cada pedalada era a busca de uma sombra ou de um ponto de água, o nosso termostato já se queixava. O calor era tal que conseguia sentir os poros a dilatar, cada linha de água que encontrávamos a descer a serra servia de ponto de paragem para nos encharcarmos e usufruir  da sua propriedade reguladora de temperatura.



A subida que se iniciou em estradão estava quase no topo mas o estradão estava transformado numa série de regos rasgados pelas águas das chuvas dos rigorosos Invernos que se fazem sentir nestas zonas e por pedras soltas que rebolam agora no terreno seco.


Quase a chegar ao topo.... Fenomenal!! Maravilhoso!! Excepcional!! Fabuloso!! Basicamente indiscritível... Uma alcatifa verde e fofa a contrastar com o castanho agreste e seco da subida e um gigantesco carvalho-negro que nos proporcionava a sombra que tanto queríamos naquele momento, naquele sítio de ninguém, onde sentimos uma profunda harmonia com a natureza...
Faltava subir mais um pouco quando o guia diz “não devias ter vindo de vermelho...” quando olho está um enorme boi barrosão, natural destas terras planalticas, petrificado a olhar para mim... e eu só penso “estará aquele bichinho de grande porte com aqueles chifres pontiagudos a ter alguma ideia???”... continuei a pedalar bem calminha a imaginar que era invisível no meio daquela imensidão e que com certeza o bicho não estaria a olhar para mim... mas estava mesmo... o seu olhar seguiu-me toda aquela subida, a sua postura é de tal forma sobranceira que... tive medo... é verdade!! Tremi por dentro!! Mas no final percebi que apenas estaria a olhar e a pensar “mas que estróinas são esses que vêm aí todos contentes a pedalar serra acima com um calor destes???” e tive que lhe dar razão... o medo passou...
Perto do boi, escondidos à sombra de gigantes pedras graníticas, estavam os fantásticos garranos da Serra do Gerês, que loucura!! Estes são selvagens e mais envergonhados que o boi que continua a controlar-nos, os cavalos escondem-se... com o rabo de fora...


Chegámos finalmente ao topo, ou não fossem os relinchares vindos debaixo das cúpulas dos Cedros e passava completamente despercebida a tropa de garranos que ali refrescavam... sshhhhiiuuuu!!!! Aproximamo-nos devagar para não os assustar, escondemo-nos atrás das pedras que harmoniosa e naturalmente ajudam ao esconderijo e observamos... ouvimos... cheiramos... que sensação... sentimo-nos intrusos por isso a pausa é breve e deixamos os garranos selvagens...


No topo passamos para a vertente da serra virada a sul... Uooouuuuu!! Que planície à nossa frente... Estamos outra vez noutra dimensão, que descida nos espera serra abaixo... Os sons ecoam e despertam a atenção. Tiros? Caçadores? Não é altura de caça... Não pode ser... Foguetes!!! Como é que é possível.. em pleno Julho às 13h da tarde, sendo esta, à semelhança de muitas outras no nosso país, uma área florestal fortemente fustigada pelos fogos, como são capazes estes aldeões de colocarem em risco a riqueza do seu património para anunciar as festarolas de Verão?? Valerá a pena anunciar uma festa que pode ser interrompida com a tragédia das chamas de um foguete mal sucedido?? Por favor, deixem-se disso!! Fiquem-se pelos bailaricos ao som de música pimba que nestes vales ouvem-se a quilómetros de distância.
Começamos a descer, a descer, a descer.... até darmos a uma pequenita aldeia, daquelas bem genuínas, todas em pedra carregadas e empilhadas por mãos de trabalho perdidas na história.


Passamos por um espigueiro, um tradicional espigueiro, utilizados para guardar os cereais e os proteger das intempéries e dos roedores mais esfomeados.


Procuramos uma fonte, por norma, todas estas aldeias possuem uma fonte de água potável para servir a população e nós agradecemos pois já temos o camelbak vazio e esta água é bem fresquinha. Sentadas à sombra no degrau da porta vemos uma senhora já idosa com três crianças ao fresco, que imagem bonita, que serenidade, que qualidade de vida, que isolamento... serão elas da aldeia? Estarão elas de férias com os avós?
Encontramos um parque de merendas e aqui a história do inicio repete-se... O trilho está completamente fechado, desde que saímos da estrada nacional 304 e ainda não nos cruzámos com ninguém, excepto na aldeia com a senhora e as crianças, é Verão, os arbustos cresceram, as silvas fecharam o caminho, não dá sequer para abrir caminho a desviar para o lado, o guia sugere apanhar o trilho mais à frente, conseguimos..


A volta continua e agora entramos na parte da Geira... A Geira é o nome popular dado à Via XVIII do Itinerário de Antonino, uma via romana com CCXV milhas, qualquer coisa como 318 quilómetros, que ligava a antiga Bracara Augusta (Braga) à antiga Asturica Augusta (Astorga). O percurso é caracterizado pelo seu caminho extremamente bem estruturado, infiltrado nas serras, evitando subidas e descidas demasiado acentuadas, que encurtava a distância contada a passos e marcada a cada mil com um marco miliar.


Vejo o guia, uma pouco à frente, a sair da bicicleta e penso “porquê parar ao sol?!?”, quando me aproximo percebo que a ideia não era parar... o caminho de terra estava cortado com um gigante boi barrosão estatelado ao sol em plena Serra do Gerês, já os seus primos estavam bem confortáveis a ingerir quilos de verdura que ali não faltam. “E agora??” Voltar para trás era impensável, não havia outro caminho apenas encosta... A experiência com o outro amigo mostrou-me que o que eles querem mesmo é sossego, este ali deitado sem dúvida queria sossego mas nós precisávamos passar... Aproximamo-nos devagar, com as bicicletas à mão, ele observa-nos... E eu penso “boizinho és tão fofinho!!! Levanta esse imensurável rabo do chão e deixa-nos passar...” ao mesmo tempo que acho que com todo aquele tamanho e peso devia estar colado ao chão... E eis que, calmamente, o boi se ergue do trilho e trepa elegantemente para a encosta, não cabendo um alfinete entre as patas traseiras e a última erva antes de chegar à terra... “Que medo!! E se ele escorrega?!?” Bem é melhor não pedir mais, já ganhámos o dia hoje com a boa vontade barrosã, deve ser dos ares da serra... Lá passámos...
As sombras aqui eram muitas e as linhas de água também, parecia que tínhamos entrado numa floresta tropical, o calor era agora acompanhado pela húmidade característica, o verde vivo da floresta transpirava o encantamento proporcionado... que delicia!! É realmente lindo!!



Finalmente encontramos alguém, numa parte rochosa e sinuosa de trilho entranhado na encosta, sozinho... um maluco a fazer a Geira a caminhar, quanto mais pedalava mais pensava o que ele ainda tinha para andar. Começámos a ter que caminhar também, caminhar e carregar, monta e desmonta, as pedras e os ribeiros começaram a surgir repetidamente e pedalar tornou-se uma tarefa difícil, não só pelos obstáculos como pelo encanto paisagístico que retia a nossa atenção.
Eis que surge um singletrack delineado pelo típico feto-do-gerês e as cores da encosta feitas pelo lírio e pelo hipericão-do-gerês, foi para mim um dos pontos de fuga mais fantásticos que tive até hoje, não consigo encontrar palavras que consigam descrever o que sinto naquele momento e quando assim é memorizo, memorizo a experiência, algumas só mesmo vividas...


A descida desta encosta levou-nos por uma série de singletracks estruturados pelos romanos e agora abertos pelos caminhantes e betetistas que nos encheram a barriga de descidas, curvas, curvinhas, drops e adrenalinop!! É por isto que vale a pena subir... para contemplar a paisagem a perder de vista e para desfrutar do prazer das descidas técnicas imbuídas em panoramas prodigiosos.
Já vamos com 30 e muitos quilómetros de puro btt e, apesar dos músculos se ressentirem, sentimo-nos tão bem aqui que não queríamos que chegasse ao fim, mas estamos chegar ao fundo do vale, avistamos uma estrada em alcatrão... É a Nacional 307 que vem de Terras de Bouro, leva-nos outra vez a Covide onde paramos numa daquelas tascas à beira da estrada, que sobrevivem de jogatanas de cartas e dominós... Olham-nos como extraterrestres, mas a hospitalidade é notável... Carregamos baterias liquidas para os poucos quilómetros que faltam até ao parque de campismo.

Volta concluída, ponto de fuga atingido, 47 quilómetros e 1310 metros de acumulado e de emoções vividas e bem validas. Foi sem dúvida uma experiência a repetir, foi sem dúvida uma fuga à biosfera portuguesa.
          O dia termina, depois de uma banho recuperador, com um jantar no restaurante do parque, com umas costeletas de vitela barrosã... humm.. que delícia!! É por isto que pedalamos... depois de um dia como este tudo tem outro sabor...

Sem comentários:

Enviar um comentário